LINGUAGEM, TIPOLOGIA E ALFABETO NAS ARTES DA PICHAÇÃO NA CIDADE DE SÃO PAULO

RESUMO 

O presente trabalho intenta debater de maneira conceitual a arte da pichação na cidade de São Paulo. A relevância do tema decorre da atuação da pichação nas cidades, em especial na cidade de São Paulo, ser considerada um grave crime ambiental, visto que as manifestações estão diretamente ligadas às questões sociais no Brasil oriundo da desigualdade social. A questão–problema será: sendo a pichação uma arte urbana porque é considerada crime no Brasil? O objetivo geral a ser alcançado será: investigar a arte da pichação na cidade de São Paulo e para corroborar o objetivo central, se pontua os objetivos específicos como: averiguar, de forma breve, o contexto da arte da pichação e analisar o fenômeno da Pichação que utiliza os muros como manifestação e diálogo na cidade de São Paulo. Metodologicamente, constitui-se um trabalho de investigação qualitativa, por meio de pesquisa bibliográfica, considerando a aproximação que se estabelece com o objeto de pesquisa em pauta.  

 

Palavras-chave: Arte. Pichação. Protesto. Crime.  

 

 

ABSTRACT 

 

The present work seeks to conceptually debate the art of graffiti in the city of São Paulo. The relevance of the theme stems from the performance of graffiti in cities, especially in the city of São Paulo, being considered a serious environmental crime, since the manifestations are directly linked to social issues in Brazil arising from social inequality. The problem-question will be: is graffiti an urban art because it is considered a crime in Brazil? The general objective to be achieved will be: to investigate the art of graffiti in the city of São Paulo and to corroborate the central objective, it points out the specific objectives such as: to investigate, briefly, the context of the art of graffiti and to analyze the phenomenon of Graffiti that uses the walls as a manifestation and dialogue in the city of São Paulo. Methodologically, a qualitative research work is constituted, through bibliographic research, considering the approximation that is established with the research object in question. 

 

Keywords: Art. Graffiti. Protest. Crime. 

 

 

 

1. INTRODUÇÃO 

 

  A pichação no Brasil começa a se manifestar nas ruas no final dos anos 60. As primeiras expressões surgiram como protestos em contraposição à ditadura militar. O motivo da escolha desse tema é analisar como o Estado atual tem proferido sua concepção sobre essa prática. 

A justificativa para abordar essa temática e fazer um projeto dessa natureza deve-se ao fato da prática da pichação ser considerada crime ambiental, isto é, encontrar-se no mesmo patamar dos crimes ambientais considerados graves. Neste âmbito, a pichação criada no espaço urbano de São Paulo é bastante significativa, visto que os jovens pichadores almejam notoriedade e oportunidades em suas vidas e reivindicam essas questões por meio de modificações expressas na paisagem da cidade através das pichações.  

Neste viés, a questão-problema que se pretende responder é a seguinte: sendo a pichação uma forma de arte urbana porque é considerada crime no Brasil? A resposta para essa questão estará distribuída ao longo de todo o trabalho realizado.  

O objetivo central da pesquisa será investigar a arte da pichação na cidade de São Paulo. Para corroborar o objetivo central, se pontua os objetivos específicos como: averiguar, de forma breve, o contexto da arte da pichação e analisar o fenômeno da Pichação que utiliza os muros como manifestação e diálogo na cidade de São Paulo. 

Para alcançar os objetivos propostos, utiliza-se como recurso metodológico a pesquisa bibliográfica realizada a partir da análise de materiais publicados na literatura e artigos científicos divulgados no meio eletrônico. A revisão bibliográfica é importante, pois fundamenta o projeto teoricamente e favorece a definição de contornos mais precisos da problemática a ser estudada.  

E por fim, as considerações finais será uma reflexão do tema em pauta com a finalidade de trazer a contribuição para o campo do conhecimento uma vez que a arte da pichação é uma dinâmica latente na sociedade brasileira.  

 

 

 

 

  

2.  Arte da Pichação: breve contexto 

 

Inicialmente, analisar o que é arte torna-se fundamental para posteriormente delimitarmos a arte da pichação. Provavelmente porque não exista somente uma única forma de se entender a vida e o mundo e se manifestar sobre eles faz com que se torne complexo definir, de maneira objetiva, o que é ou não arte.  

Entretanto, à vontade, a necessidade de criar e de se manifestar artisticamente pressupõe-se o surgimento das formas artísticas. Existem muitas maneiras de explicar o que é arte, ou mesmo diversificadas motivações que impulsionam os artistas a fazerem o que acreditam ser arte.  

Neste contexto, a pichação pode ser reconhecida como arte? E qual a motivação? A pichação como arte visual, como o próprio nome diz, refere-se às manifestações artísticas que envolvem o sentido da visão. Esse é um dos sentidos que a maioria das pessoas usa em seu cotidiano, especialmente na atualidade. São artes visuais a pintura, a escultura, a gravura, a fotografia, o desenho e a pichação, objeto de pesquisa dessa pesquisa.  

Em nível de esclarecimento, por serem esteticamente diferentes como na nomenclatura, faz-se necessário averiguar a proximidade entre grafite e pichação. Consequentemente falar da pichação dentro desse contexto mostra que a distinção entre os dois termos se caracterizam em diferenças propriamente estéticas, e essa separação é muito abordada no Brasil. 

Em relação à técnica, estas duas expressões apresentam diferenças práticas. A primeira e mais óbvia é o tempo de execução. A pichação, devido ao seu caráter invasivo e aos lugares onde é feita, exige rapidez no traço e na construção da assinatura. Portanto, ela apresenta uma simplicidade quanto às linhas e aos traços, e o uso de uma única cor, quase sempre preto. Mas é possível pensar que pelo seu caráter essencialmente tipográfico, não há características que propiciem a entrada no circuito arte. Também, a pichação está completamente vinculada ao contexto; dentro de um museu ou galeria perderia seu sentido contestador (MONASTEIROS, 2011, p. 36). 

 

A pichação pode ser retratada como uma expressão artística de contracultura, pois evidencia resistência das classes populares, uma vez que reassume a linguagem popular dos marginais e o descontentamento com o sistema atual, pois partem do princípio relativo à reflexão e ao questionamento. 

Entretanto, vale lembrar que o ato de rabiscar as paredes não é algo novo, ou seja, típico dos tempos atuais. Temos a arte rupestre como uma das primeiras formas de expressão e comunicação do homem. Diversos autores procuram traçar o surgimento de inscrições nas paredes e nos muros do mundo, e particularmente do Brasil. Muitos deles remetem suas origens às pinturas rupestres feitas por nossos antepassados ainda na pré-história, como relata Celso Gitahy (1999, p. 20), que afirma “a pixação não é exclusividade das sociedades atuais” e descreve diversos momentos da história quando as paredes e os muros eram usados para protestos, propagandas, declarações de amor e divulgação de decretos. Ainda assim, os autores estão de acordo ao afirmarem que foi a partir da década de 1960 que o graffiti e a pixação começaram a ganhar notoriedade e atenção dos citadinos, das autoridades, das mídias e do mercado. 

Para elucidar o tema pode-se constatar que a filosofia clássica compreendia a arte como pertencente ao conhecimento e o ato de criar. Vejamos o que esboçou Hegel:  

Hegel compreendia que a arte tinha especificidade, pois apenas ela seria capaz de unificar aparência e essência. Na arte, a espiritualidade apareceria em todos os fenômenos manifestando a sua infinitude interna. A arte, à semelhança dos olhos teria que “[...] proceder de tal modo que em todos os pontos de sua superfície o fenomenal seja o olhar, sede da alma que torna visível o espírito” (HEGEL, 1983, p. 8). 

 

Neste sentido, pode-se perceber que o fenômeno da pichação, é algo autêntico porque mantém suas qualidades assim como os defeitos, visto que possui espontaneidade de quem o pratica marcada pela transgressão no cenário das cidades.  

Desenhar as paredes e laterais de grandes prédios demonstra uma maneira de dialogar e difundir formas de pensamento e reflexão denominando-se arte de rua, o que origina forte repercussão no interior das grandes cidades que contém os indivíduos e suas relações, como manifesta Pesavento 

A cidade é objeto da produção de imagens e discursos que se colocam no lugar da materialidade e do social e os representam. Assim, a cidade é um fenômeno que se revela pela percepção de emoções e sentimentos dados pelo viver urbano e também pela expressão de utopias, de esperanças, de desejos e medos, individuais e coletivos, que esse habitar em proximidade propicia (PESAVENTO, 2007, p.14). 

 

 

A autora reforça que os personagens que fazem acontecer o urbano estão divididos entre os vistos e os não vistos. Entre os corretos e os incorretos. Entre os marginais e os “de bem”. São estes, misturados no cenário urbano, que possibilitam a trama de acontecimentos diários de qualquer localidade. Para observar uma cidade, seus acontecimentos e componentes, precisamos de olhos atentos e capazes de enxergar além do visível (PESAVENTO, 2007).  

No entendimento do professor Oliveira (2012), a pichação mantém-se em sua autenticidade por ser um fenômeno perene na manifestação, porém fugaz na dinâmica da cidade. Ou seja, a pichação mantém-se em seu caráter transgressor ao mesmo tempo em que se refaz no movimento da cidade: o que é comunicação/linguagem hoje pode perder sentido amanhã quando pintado (seja por outra pichação ou para a sua remoção), evitando que esta seja reproduzida tecnicamente. 

É importante salientar que, havendo uma relação direta entre a pichação e as grandes cidades, a maioria da população mundial vive nos grandes centros urbanos. Esta realidade é marcada por uma prosperidade que habita os espaços modernos das cidades, mas também demonstra suas contradições se pensarmos nas periferias que se organizaram e marcaram a marginalização social. Toda a vida urbana parece se estabelecer diante desta contradição, a riqueza e a pobreza, resultado do desenvolvimento da economia capitalista.  

Atualmente as grandes cidades sofrem mudanças significativas em suas estruturas e no modo de vida nesse período de reprodução ampliada do processo do modo capitalista de produção, seja devido ao avanço do aparato tecnológico, seja pelo aumento do fluxo do capital. Os centros urbanos começam a oferecer um tipo de divisão dentro de uma linha produção-consumo do espaço urbano, no qual, segundo Gonçalves e Estrella, “estamos sempre de passagem”. (GONÇALVES; ESTRELLA, 2007, p. 104).  

 

 

Dentre às circunstâncias para compreender a relação existente entre a pichação com a cidade refere-se às formas arquitetônicas modernas e pós-modernas. Deste modo, a pichação propõe, mesmo que de forma não proposital, um acesso a essas duas esferas – a cidade e a arte – por intermédio da agressão. Esta forma de expressão, assim como foi o Dadaísmo no começo do século passado, “tinha que satisfazer uma exigência básica: suscitar a indignação pública” (BENJAMIN, 1994, p.191).  

Neste viés, a pichação enquadra-se num posicionamentocontrarracional” que se expressa nas suas produções, como expõe os autores Gonçalves e Estrella: “essas contrarracionalidades se caracterizam pelos espaços das vivências cotidianas a despeito das forças globalizantes e homogeneizantes do capital” (2007, p. 106): ou seja, a pichação não se integra nos meios “sacralizados” da arte porque não partilha dos protótipos estéticos estipulados como artísticos. E também, por não gerar renda nem reprodução, não se encontra na lógica que move o sistema capitalista 

O sociólogo e filósofo francês Jean Baudrillard, considerado um dos principais pensadores da pós-modernidade, explica que: 

[...] aquelas inscrições indecifráveis (uma referência às pichações e às assinaturas) eram a própria negação da cidade como lugar da circulação volátil da forma mercadoria. Ao postar-se próxima aos cartazes publicitários geravam um curtocircuito sígnico, já que essas assinaturas indecifráveis renegam o discurso do poder dos suportes midiáticos e sua eficiência difusora. A essa potência de negação da cidade como lugar dos fluxos canalizados do capital, (a pichação) impõe sua desconcertante invasão (BAUDRILLARD apud GONÇALVES; ESTRELLA, 2007, p. 106). 

 

 

Observa-se que as questões pontuadas por Baudrillard permanecem atualizadas, na medida em que a pichação continua inserida de uma categoria tida como “underground1, isto é, um movimento artístico que denota oposição e resistência ou, como colocou Baudrillard, movimento artístico revolucionário.  

Desta forma, o fenômeno da pichação surgiu nas ruas das cidades caracterizadas por um movimento juvenil que manifesta suas reflexões, pensamentos, reivindicações e maneira de ser, em que esboçam contraposição com as injustiças existentes na sociedade e neste interim transformam paisagens bem como o imaginário social.  Justamente por isso, remontam a uma juventude marginalizada, à margem da sociedade, vistos como indivíduos desviantes por fugirem às normas sociais. Porém, estes jovens pichadores visam o aperfeiçoamento tanto na técnica como na estética para atingir seus propósitos de maneira mais fundamentada.  

As autoras Da Rocha e Eckert (2016), em seus estudos acerca da arte de rua, afirmam que a mesma ―tem por propósito atuar sobre a alma dos habitantes das grandes cidades através de suas imagens e suas linguagens visuais, tornando seus territórios únicos, diferenciados. Em contraponto a este aspecto, as autoras salientam que atualmente essa forma de expressão já está sendo utilizada nos projetos urbanísticos devido ao seu caráter comunicacional e pela fruição estética que provoca na população. Porém, a relação que se estabelece entre as políticas culturais para os espaços urbanos e a estética da arte urbana não é harmoniosa devido à ideia de padronização e uniformidade das cidades (p. 41).  

Neste cenário, o fenômeno da pichação, como relatado ao longo deste trabalho, encontra-se muito presente nas grandes cidades, como São Paulo, temática abordada a seguir.  

 

3. O fenômeno da Pichação tem os muros como manifestação e diálogo     na cidade de São Paulo 

 

A pichação transforma as cidades em um tipo de rede social. E isso se deve ao fato de que no momento que identificam os companheiros, melhor dizendo os parceiros, nas inscrições e também ao exporem seus nomes, rabiscos, desenhos e frases exprimindo protestos nos mais diferentes muros da cidade acabam possuindo alguma visibilidade à medida que irão curtir e serem curtidos nas redes sociais. 

Mas, o que é pichação? Conforme as autoras Danysz & Dana a pixação2 ou o pixo “com X”, como muitos defendem é um tipo de expressão ligado fundamentalmente à palavra e à escrita. Em diversos documentários, estudos e em conversas com alguns grafiteiros e pixadores, existe a afirmação de que a pixação é um movimento originalmente brasileiro. As autoras Danysz e Dana (2011) descrevem a pixação como uma “distinta forma de graffiti nascida em São Paulo, Brasil, baseada em letras longas, verticais e triangulares” (DANYSZ & DANA, 2011, p. 408).  

De acordo com Passeau (2014) costumam restringir a pichação paulistana às inscrições desses grupos de jovens de periferia que competem entre si e que visitam o centro em busca de adrenalina e reconhecimento. Encontram-se nos points e partem pela cidade a procura do melhor lugar para escrever o nome de seu grupo. Arriscam a vida com as técnicas de escalada para deixar a sua inscrição nos lugares mais altos da cidade. Essa expressão já quase virou paisagem na capital paulistana, de tão recorrente. 

A arte de rua possui uma forte presença na cidade de São Paulo, a qual apresenta um estilo muito particular de uma das técnicas mencionadas anteriormente: a pichação ou pixação, como é mais comumente identificada pelos seus autores e a qual é caracterizada por Canevacci como “um fenômeno ‘já clássico’ (e odiado por muitos cidadãos) da comunicação urbana em São Paulo (...), um estilo que se tornou verdadeiramente característico da capital paulistana” (CANEVACCI, 2004, p. 203). Essa prática, comumente vinculada ao vandalismo encontra resistência para obter aceitação pela sociedade, pois seus alvos costumam ser edificações públicas ou privadas com bastante notoriedade.  

Em contrapartida, a pichação em São Paulo tem adquirido cada vez mais aceitação como uma forma autêntica de expressão por parte da comunidade artística. O seu reconhecimento como ‘arte urbana’ fez com que pudesse participar da 29º Bienal de São Paulo. Três dos polêmicos 40 pichadores da bienal de 2008 “foram convidados pela curadoria, na condição de artistas, para representar o movimento do “pixo”. O que era intervenção urbana ganha agora status de arte, arte marginal, urbana, proibida e transgressora” (COHEN, 2014).  

Pode-se verificar que o espaço urbano pode tornar a obra mais relevante e interessante por alcançar um número maior de pessoas, como retrata Lucas:  

Vasconcelos chega a ponto de afirmar que a arte se torna mais relevante quando exposta no espaço público. Meramente contemplativas ou assumidamente contestadoras, as obras de arte expostas no tecido urbano criam novas possibilidades de diálogo com o público, pois, ao extrapolar o espaço hermético do museu/galeria, tornam-se elemento instigador na relação entre o cidadão e o espaço público (LUCAS, 2009, p120) 

Neste sentido, a obra de arte pública tem de ser criada como componente que integra o ambiente e não como apêndice de decoração, como corrobora Mashinini (1998) ao dizer que, a arte pública se tornaria componente importante na revitalização das cidades e da própria sociedade. Para o autor, a obra de arte pública criou oportunidades para a expressão da comunidade, trazendo benefícios econômicos, do ponto de vista turístico, melhorando até a estética dos edifícios e do próprio espaço público. 

Entretanto, existe uma questão que gera determinada divergência com as obras de arte pública que causa desconforto em muitas pessoas: a poluição visual. São postes de luz, placas de trânsito, painéis publicitários, outdoors, que interferem na leitura das obras expostas na cidade. Lucas ainda ressalta que: No espaço urbano da grande cidade, a obra de arte exposta disputa visibilidade com estímulos de outra natureza, como mensagens publicitárias, pichações, vitrinas, sinais luminosos, néons e fachadas, e não com outras obras de arte. Assim, apesar da presença da moldura também nos outdoors, nos painéis de bancas de revistas e nos cartazes de abrigos de ônibus, por exemplo, torna-se muito mais difícil transformar a obra de arte em unidade exibível e, mais difícil ainda, anular os efeitos do entorno sobre a obra (LUCAS, 2009, p. 124). 

Diante isso, evidencia-se que a pichação é contraventora, faz parte de sua motivação, e em vez de ser vista como um insulto à obra deveria ser reconhecida como a obra de arte que exprime comunicabilidade através da estética da agressão, da violação, utilizando a cidade como base para tal feito.  

Ao analisar a relação da obra de arte pública com o expectador, vários são os autores que debatem essa percepção do público das obras. A autora Maria Lúcia Montes entende que essa relação força um questionamento do cidadão sobre a qualidade do seu convívio, e de “reconstruir formas significativas de pertencimento, recriando solidariedade e novas identificações com o espaço da cidade, numa nova maneira de reconstituição de identidades sociais e culturais” (MONTES, 1998, p. 278), e de democratização da obra de arte para um público maior e com diferentes aspirações. 

“As manifestações artísticas são uma forma de resgatar o questionamento num momento em que a força avassaladora do capital golpeia tudo o que se contrapõe aos valores hegemônicos” (MIERS, 2006). Assim, a pichação não se apresenta mais do que um ato primitivo que de fato proporciona uma crítica forte sobre a visibilidade da periferia nos centros urbanos. O híbrido pichação-monumento evidencia um exemplo claro do movimento antropofágico ao denunciar a realidade excludente da memória paulistana e ao procurar criar um sentido de pertencimento. É evidente que os monumentos não geram esse sentido de pertencimento à cidade para os pichadores, o que revela uma possível perda do sentimento coletivo de identificação (COHEN, 2014).  

O autor David de Souza (2012) faz uma observação bastante relevante sobre o processo de pichação. Ao comentar o aspecto agressivo da pichação, fala sobre uma estetização da violência, que não corresponde à representação plástica desta, mas na disputa “pela tinta” e não no embate físico. Isto é, os confrontos de pichador contra pichador, pichador contra agentes repressivos do Estado e de pichador com o proprietário são vencidos quando esse consegue deixar sua marca no muro sem mais problemas ou interrupções (SOUZA, 2012, p. 272). 

E essa realidade encontra-se latente nos muros da cidade de São Paulo:  

A pixação em São Paulo, ou o “pixo”, como seus autores costumam também chamá-la, é uma manifestação estética de parte da população jovem das periferias. Trata-se da grafia estilizada de palavras nos espaços públicos da cidade que se referem, quase sempre, à denominação de um grupo de jovens ou ao apelido de um pixador individual. Essa pixação possui um formato bastante peculiar: com traços retos e angulosos, ela diferencia-se do que seria o estilo norte-americano de pixação, designado tag, cujo formato arredondado lembra mais uma rubrica (PEREIRA, 201, p. 146).   

 

No âmbito jurídico, A prática da “pixação” ou o ato de rabiscar nomes escritos em letras estilizadas nas paredes externas de edificações urbanas é enquadrado no Brasil, desde 1998, como crime ambiental, conforme a Lei 9.605, que, em seu artigo 65, modificado em 2011, afirma que “Pichar ou por outro meio conspurcar edificação ou monumento urbano” pode incorrer em pena de detenção de três meses a um ano e multa. Em sua primeira redação, de 1998, no entanto, o referido artigo da lei dizia que “Pichar, grafitar ou por outro meio conspurcar edificação ou monumento urbano” é que levaria à aplicação das penalidades descritas. Exprime-se, assim, como a legislação federal implementou uma distinção - que é muito forte no Brasil, principalmente em São Paulo, entre graffiti e “pixação”. À primeira expressão, atribui-se o status de arte urbana ou arte pública a embelezar e valorizar as cidades; já a segunda é classificada como sujeira, vandalismo ou poluição visual (PEREIRA, 2020). 

Em São Paulo, manifesta Pereira (2020) a pixação estabelece uma relação bastante complexa com outra manifestação estética, o grafite. Enquanto em outras cidades do mundo o que aqui se denomina pixação é apenas um estilo dentro do grafite, na capital paulistana ela é vista por uns como o seu oposto – o grafite é entendido como arte enquanto ela é considerada sujeira e poluição visual – e, por outros, como um estágio inferior do grafite, que seria o patamar mais alto dessa forma de expressão. Por conta dessa aversão à pixação, principalmente pelo poder público e pela imprensa, os grafiteiros conseguiram adquirir até certa notoriedade junto à mídia e à população. Atualmente, muitos deles são contratados para realizar seus trabalhos em portas e fachadas de comércios, escolas e equipamentos públicos como forma de combate e prevenção à pixação 

O antropólogo Alexandre Pereira traça um panorama dos pichadores da cidde de São Paulo:  

Os pixadores são, em sua maioria, jovens moradores de bairros periféricos de São Paulo e o seu point central constitui um espaço de encontro de indivíduos de diferentes regiões. Sua localização na região central da cidade deve-se justamente ao fato de esses jovens virem da periferia. O centro é um lugar estratégico por ser um ponto de convergência e também um espaço de passagem para todos. Da mesma forma, ele é estratégico para o próprio ato de pixar o espaço urbano: “dá mais ibope pixar no centro, pois é por onde passam pixadores de todos os lugares”, afirmaram-me muitos deles. Em outras palavras, aquele que deixar sua marca nos muros e edifícios das áreas centrais de São Paulo obterá maior visibilidade e, consequentemente, maior notoriedade junto aos seus pares. Na pixação, quem pixa no maior número de lugares, em pontos de maior destaque e em lugares mais arriscados consegue mais status dentro do circuito dos pichadores (PEREIRA, 2020, p. 149).  

 

Em 2009, houve o documentário Pixo, em que o pixador Djan relembra façanhas de Di, considerado o maior pixador de São Paulo. No auge do seu trabalho, Di pixou o ―Conjunto Nacional, um prédio muito cobiçado pelos escritores urbanos paulistas. Ao finalizar a pixação, ligou para um jornal, se passando por um morador indignado. A matéria foi publicada no dia seguinte, em um jornal da época. ―Di afirmou que ficou apavorado com a situação. Segundo ele, o esquema de segurança do prédio não poderia permitir esse tipo de ação, ressaltou a publicação (FONTANA, 2019, p. 32).  

O pixador Naldo, neste mesmo documentário Pixo (2009), comenta as frases de protesto que coloca nas ruas: ―O governo quer o povo burro. Burro e sem informação. A gente aqui é pixador, mas ninguém é burro. Todo mundo lê jornal, todo mundo sabe o que tá acontecendo E Tatei, também pixador, afirma: ―Quando nos conhecemos foi pra jogar pra mídia, vamos pros muros pra sair na TV, jornal, o que for possível, internet. Até no celular dos outros. Nas imagens do documentário, diversos recortes de jornais com fotos dos trampos guardados como relíquias pelos pixadores. O pixo aparece como forma de protesto e é capaz de oferecer pautas para o fazer jornalístico (idem, p. 34).  

Convém ressaltar que a pichação também faz investimento na mídia como forma de divulgar sua ideologia. Existem alguns registros realizados pelos próprios pichadores relatando suas experiências, histórias, motivações, conquistas, confrontos, derrotas. Entretanto, esses materiais não se encontram amplamente divulgados, pelo contrário, ainda se encontra restrito aos adeptos e simpatizantes dos pichadores.   

Ao longo desta pesquisa pode-se compreender que o fenômeno da pichação é uma vertente do cenário democrático brasileiro e abarcam vários ramos do conhecimento, como as Ciências Jurídicas e Sociais, Comunicação Social, Artes Plásticas dentre outros. As discussões referentes ao tema são bastante amplas e com posicionamentos diversificados por tratar-se de movimentos com expressão nas relações urbanas da atualidade. Apesar disso, ainda existe uma escassez de estudos e pesquisas sobre a prática da pichação nas cidades brasileiras que, apesar de ser um movimento urbano, permanece considerado como crime pela jurisdição do país assim como por muitos indivíduos da sociedade.  

 

 

4. Considerações Finais 

 

Com caráter mais propositivo que conclusivo, a arte pode ser entendida como toda forma de criação humana cuja finalidade é se manifestar de maneira estética. Assim, a música, a pintura, o cinema, a escrita, as esculturas, as arquiteturas, enfim, todos são formas de arte. Porém, a prática da pichação não se encaixa nessa definição porque denota uma maneira de crime mesmo em forma de arte.  

Mas a realidade enquadra a pichação como crime e como tal é plausível de detenção pelos seus praticantes e pagamento de multa. Deste modo, paira na sociedade uma incerteza: a prática da pichação é uma forma de expressão artística, política ou vandalismo?  

Isso se justifica na medida em que a prática da pichação gera preocupação no meio social. Até porque as autoridades brasileiras enxergam a pichação como um desacato as leis instituídas, visto que a pichação é por vezes considerada como uma forma de protesto contra a desigualdade social vigente por jovens e adolescentes residentes na periferia. É, determinantemente, um meio de dar voz a quem não tem voz e nem vez.  

A pichação é considerada uma maneira de vandalismo, principalmente para aqueles são contra e repudiam esse tipo de prática. Para aqueles que prestam atenção nas pichações alastradas pelas cidades irão se deparar com denúncias diversas contra certos políticos e o próprio governo, pela insuficiência da educação, da saúde, enfim, de serviços básicos que não são oportunizados a grande parte da população, em especial as comunidades periféricas.  

No centro de São Paulo, jovens e adolescentes de diferentes locais da periferia da cidade reúnem-se para articular as estratégias das práticas realizadas, pois apesar de não parecer, existem entre eles técnicas e regulamentos para delimitar o espaço de cada um.  

É justamente nesse contexto que a cidade de São Paulo e outros centros urbanos se transformam em cenário de confronto com cunho simbólico manifestando às questões sociais latentes no país. Os jovens adeptos dessa prática da pichação anseiam por transformações que indique maiores possibilidades de vida digna a todos e isso é expresso como forma de protesto por meio de rabiscos que denotam o descontentamento com a desigualdade social que assola o Brasil.  

  

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

REFERÊNCIAS 

 

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