Epidemia e censura: as tentativas dos militares em esconder números

 




Na noite do dia 5 de junho de 2020, o site com números oficiais de óbitos e infectados pela Covid-19 no Brasil, administrado pelo governo federal, sai do ar. Horas antes, indagado por jornalistas sobre a razão do adiamento da divulgação dos números — antes às 19 horas — Bolsonaro ironiza: “Acabou matéria do Jornal Nacional”. A partir dali, os dados só seriam divulgados às 22 horas. Décadas atrás, o governo militar mobilizava todo o aparato censor a fim de esconder uma crescente de óbitos por outro tipo de infecção: a meningite.

Desde 1971, do chão de terra ao asfalto, a meningite do tipo C percorreu o caminho de todas as classes sociais, arrasando trabalhadores e patrões. Em maio de 1974 seria a vez da meningite meningocócica do tipo A, a ocupar as preocupações. Ou não.

Antes do controle social, o regime militar, ainda crente das benesses do “milagre econômico”, aperta com mais força a traqueia da imprensa já sufocada. Documentos obtidos pelo jornalista Carlos Madeiro do portal UOL revisitam as engrenagens da repressão estatal e suas tentativas frustradas em impedir o inevitável. O governo militar sabia da tragédia anunciada.

O apogeu da epidemia e, consequentemente, a noção das massas de que algo não estava certo, ainda estava por vir. No ápice dos números de infectados, em setembro de 1974, a proporção foi de 200 casos por 100 mil habitantes. A estratégia — raramente inteligente — do regime foi contraditória em todos os âmbitos. Apesar de optar pelo fechamento de escolas e cancelamento de eventos, o maior deles o Pan americano de 1975, que ocorreria em São Paulo, os militares recorreram à censura dos meios de comunicação, impedindo a veiculação de notícias de cunho “alarmista”. ”Sabe-se de sobejo que o alastramento do mal encontra campo propício nos aglomerados populacionais, nos ambientes de pouca higiene e na estação invernal. Nessas condições a cidade de São Paulo é um meio ambiente ideal, sabendo-se que a cidade não é servida de esgotos em dois terços de sua área e 50% da população não é servida por rede de água. Acresce dizer que o clima de São Paulo, frio e úmido, no inverno, concorre, com e enorme população, decisivamente para o desenvolvimento epidêmico”, diz um dos documentos.


Documento do SNI (Serviço Nacional de Informações) 1974


O então diretor da polícia federal, Moacyr Coelho, detentor de um radiograma do dia 30 de julho de 1974, explicita no documento que “deve ser seguida a ordem de manter proibida a divulgação de dados numéricos e gráficos sobre a meningite.”

Quase meio século depois, o portal estava “em manutenção”

Jair M. Bolsonaro nunca escondeu sua predileção pelo obscurantismo. Como se a realidade fosse maleável, o chefe de Estado brasileiro tenta mondá-la para caber em seus interesses pessoais. Em abril, defendeu o uso da cloroquina, mesmo que não havendo consenso na comunidade cientifica sobre sua eficácia contra a COVID-19. Mandetta, o primeiro ministro da saúde caiu, pois não concordava com o uso do medicamento. Nelson Teich pediu demissão pela mesma razão, com menos de um mês ocupando o cargo. Ao redor do Globo, não há país que tenha trocado de ministro da saúde em meio a uma epidemia histórica. Nós, trocamos duas vezes.

Sob o comando do inexperiente general Eduardo Pazuello, o ministério da saúde finalmente parece se curvar aos caprichos de Jair. Mesmo com o número de coletivas do ministro interino diminuindo vertiginosamente e as falas apáticas do presidente ao tentar diminuir o impacto socioeconômico causado pela pandemia, houve surpresa e descontentamento geral quando o portal do governo, com números oficiais de mortos e infectados, saiu do ar.




Após pressão, eventualmente o site voltou ao ar, mas sem o número total de casos e óbitos. O ato, foi a mais torpe tentativa de ocultação de números desde 1974, na era Geisel.

Trazer à luz as transgressões de Bolsonaro frente aos números de óbitos pelo novo coronavírus, é chover no molhado. No cenário político, o presidente surge como peça anacrônica, trazendo em seu encalço o fedor acre das marchas antidemocráticas. Munido da vassoura oriunda dos porões do DOI-CODI, varre para debaixo do tapete todas as mortes de inocentes, com a mesma indiferença de uma criança destruidora de formigueiros.




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