Gripe espanhola e Corona vírus: semelhança secular

 

Enfermeiras da Cruz Vermelha em Saint Louis (EUA), em outubro de 1918. (Getty Images)


É incerta a sua vinda. Um acervo de documentos contraditórios e números imprecisos dão formas abstratas ao fato. Há quem diga que o desembarque foi no litoral de Pernambuco, outrora morada do povo Tapuia. Com maior frequência, afirmam ter sido nos portos da Bahia, o que seria irônico, afinal, Cabral também aportou por lá.

Em terras tupiniquins, foi do litoral ao interior, levado em movimentos de ondas mesmo a quem nunca sentiu o cheiro de mar. As expedições dos “navios carteiros”, levando correspondências pelo globo, aportaram incautos à possibilidade de infecção.

No século XX outra epidemia viral tomou conta das discussões, gerando medo e incerteza; roubando o oxigênio dos pulmões. A Influenza vírus arrebatou mais vidas que as trincheiras da Grande Guerra.

Seja qual for a sua crença, há de se admitir todo o misticismo do ano de 1918. O período seria marcado com o fim da “guerra das guerras”; um ponto de virada na vida europeia com a queda de impérios e o início da corrida industrial. Dali para frente, vidas despedaçadas seriam costuradas por linhas de uma nova lógica capitalista e um vigor nacionalista. Os que foram deixados para trás, nas camas dos hospitais, foram excluídos da nova conjuntura e condenados a lidar com uma das mais terríveis consequências da Grande Guerra, a “gripe espanhola”.

Entre os historiadores, não há consenso sobre seu local de origem, apesar do nome popular. A Espanha, país neutro no conflito europeu, carrega o fardo da doença por razões lógicas. Em tempos de guerra, é comum a interferência estatal nos veículos de comunicação, a fim de acalmar os ânimos. Um eufemismo para “censura”. A maior liberdade de imprensa no país ibérico nos forneceu mais informações sobre a epidemia, acarretando o infeliz estigma.

A escassez de fontes confiáveis nos leva a discussões permeadas por números homéricos. De janeiro de 1918 a dezembro de 1920, 500 milhões de pessoas foram infectadas — ¼ da população mundial à época. A imprecisão com os algarismos se torna maior na contagem dos corpos: entre 17 e 50 milhões de óbitos, com estimativas que chegam aos 100 milhões.

A tragédia e a farsa

Queimar alfazema, acender incensos e tomar cachaça com limão. Jornais do período receitavam todo o tipo de mandinga para combater o vírus, mesmo sem qualquer comprovação cientifica. No século XX, o Homem ainda se deslumbrava com a ciência, como uma criança com as luzes do natal. Semelhança com o século seguinte, é mera coincidência.

O fim de 2019 parecia uma lufada de novos ares, o fim de um ciclo. A verdade, é que foi a calmaria antes da tormenta. Os primeiros casos de um vírus desconhecido, descoberto na China, são noticiados sem muito alarde. O torpor de nossa sociedade cansada logo produziu seus memes, ligando a novidade a um apocalipse zumbi ou algo parecido. Foi pior, quem diria; dali para frente seriam banhos de álcool em gel, gargarejo com vinagre e cloroquina.

Envolto em censura e controvérsia, a descoberta do novo coronavírus gerou especulações de ramos longos demais para se esconder. Documentos revelam que o governo chinês sabia da gravidade da infecção antes do surto globalmente.

Por aqui, a ressaca carnavalesca veio em dobro. Mesmo acostumados as mais cruéis ironias, não estávamos preparados para a maior de todas: foi na quarta-feira de cinzas a confirmação do primeiro caso no país.

Apesar da aparente distância segura das garras do controle social chinês, mergulhamos no caos da desinformação; num redemoinho de perguntas bastardas. Desta vez, a censura fez-se obsoleta, dando lugar a um fluxo constante de notícias desencontradas. Discussões acadêmicas tomaram forma a olhos vistos e assumiram uma superficialidade que fez escancarar nossas deficiências educacionais. Nós, cientistas e estudantes, deveríamos encontrar caminhos que nos levem a uma democratização maior dos debates, à universalização concreta do ensino; mesmo a linguagem acadêmica é excludente e elitista. As políticas públicas para o combate à COVID-19 no Brasil (ou a falta delas), é consequência direta de um ego intelectual anacrônico, sem lugar.

As inconveniências da velha República — período histórico de 1889 a 1930 — parecem ter criado raízes de profundidade secular, cujo propósito é perpetuar uma elite frustrada no poder. As mazelas do outro século, ainda nos serve como roupa nova e o esforço é para ficarem cada vez mais confortáveis.

A História tem um senso de humor macabro. Em 1918, o presidente da República Francisco de Paula Rodrigues Alves não resistiu a infecção pelo vírus influenza, em 2020, o atual mandatário não só resiste ao novo corona vírus (em todos os sentidos), como faz questão de passá-lo adiante.


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

LINGUAGEM, TIPOLOGIA E ALFABETO NAS ARTES DA PICHAÇÃO NA CIDADE DE SÃO PAULO

ORGANIZAÇÃO DA CLASSE OPERÁRIA DO ABC PAULISTA (1964-1989)