A cronologia do massacre dos povos indígenas do Brasil

 


Escreveu o fidalgo português: “Ali veríeis galantes, pintados de preto e vermelho, e quartejados, assim pelos corpos como pelas pernas, que, certo, assim pareciam bem. Também andavam entre eles quatro ou cinco mulheres, novas, que assim nuas, não pareciam mal. Entre elas andava uma, com uma coxa, do joelho até o quadril e a nádega, toda tingida daquela tintura preta; e todo o resto da sua cor natural. Outra trazia ambos os joelhos com as curvas assim tintas, e também os colos dos pés; e suas vergonhas tão nuas, e com tanta inocência assim descobertas, que não havia nisso desvergonha nenhuma.”

Em 1500, após o primeiro contato da nau liderada por Pedro Alvares Cabral (1468-1520) com os povos originários daquela terra desconhecida, Pero Vaz de Caminha (1450-1500) redigiu tais dizeres para os olhos do rei de Portugal D. Manuel I (1469-1521). O escrivão, tão maravilhado quanto poderia, produziu a mais importante e detalhada documentação histórica sobre a invasão portuguesa no que viria a ser o Brasil e atiçou a sanha por metais preciosos da nobreza lusitana: “[…]Viu um deles umas contas de rosário, brancas; fez sinal que lhas dessem, e folgou muito com elas, e lançou-as ao pescoço; e depois tirou-as e meteu-as em volta do braço, e acenava para a terra e novamente para as contas e para o colar do Capitão, como se dariam ouro por aquilo.”

Caminha pereceu cedo, no fim daquele mesmo ano, na Índia. Carregou para o túmulo a fundação do que viria a ser uma nova colônia de exploração nas Américas. O entusiasmo que se tem pela carta e sua descrição minuciosa daquela terra virgem, faz passar despercebido aos leigos parágrafo que selou o destino dos povos que a habitavam: “De ponta a ponta, é tudo praia-palma, muito chã e muito formosa. Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande, porque, a estender olhos, não podíamos ver senão terra com arvoredos, que nos parecia muito longa. Nela, até agora, não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem coisa alguma de metal ou ferro; nem lho vimos. Porém a terra em si é de muito bons ares […].’’  E crava com tinta negra o que viria a jorrar em vermelho-sangue“Porém o melhor fruto que dela se pode tirar me parece que será salvar esta gente”.

As primeiras décadas do contato entre os dois povos foram de relativa paz, no chamado período Pré – colonial (1500-1530). Os lusitanos, em menor número, necessitavam da mão de obra indígena para a localização e extração do primeiro produto colonial a abastecer os cofres da metrópole, o Pau-Brasil. O trabalho dos povos nativos foi recompensado com quinquilharias típicas da Europa, como o espelho, fato histórico utilizado à exaustão por grupos revisionistas, tentando atribuir aos povos indígenas a venda de sua terra. Deixam de mencionar que a imagem refletida naqueles nacos de vidro barato interessava pouco aquele povo; desejam mesmo era o aço frio, bem como os machados, facões e enxadas portuguesas. Ao ver novas caravelas no horizonte, se jogavam ao mar numa espécie de procissão àquelas monstruosidades de madeira. Não em busca da salvação, mas sim de novidades materiais.

A relação amigável teria seus dias contados quando da mudança do interesse econômico dos exploradores. Nem a madeira nem a seiva vermelha como brasa do Pau Brasil abarrotava cofres como o doce pó cristalizado produzido com maior evidencia na América-Central. A cana-de-açúcar, matéria-prima da amargura de tantas vidas no continente, foi finalmente introduzida na colônia portuguesa. A quantidade de caravelas ostentando a cruz da ordem de Cristo cresceu exponencialmente na segunda metade do século XVI, como um enxame de moscas ao descobrir carcaça fresca. Paralelo ao crescimento demográfico, cresceu a violência.

A suposta “inferioridade” dos povos originários foi caminho pavimentado para o trabalho forçado. Munidos somente do conhecimento de seu ambiente, resistiram o quanto podiam. Segundo a FUNAI (Fundação Nacional do Índio) em 1500, pelo menos 3 milhões de indígenas viviam em solo brasileiro. Nos idos de 1650, o número já era de 700 mil. Dizimados pelas doenças trazidas pelo homem branco e suas armas cuspidoras de fogo, se refugiaram cada vez mais ao interior do continente, não deixando escolha aos europeus se não dar início a mais um genocídio étnico: a escravidão de negros.

“Relativamente incapazes”

“Pelo meio-dia, um ronco de avião ou de helicóptero se aproximou. O pessoal saiu da maloca para ver. A criançada estava toda no pátio para ver. O avião derramou como que um pó. Todos menos um foram atingidos e morreram”, relatou Egydio Schwade, co-fundador do Conselho Indigenista Missionário. O massacre foi apenas 1 ano após a promulgação do Estatuto do Índio (1973), o comitê de boas vindas da ditadura militar. Tutelados pelo Estado e a sociedade civil, os povos originários deveriam se integrar à “comunhão nacional”.

A problemática da inserção dos índios à sociedade dita “civilizada” nos traz ao século XXI e escancara a completa falta de empatia e conhecimento histórico do atual mandatário no governo federal, Jair Messias Bolsonaro que, em entrevista afirmou que: “O índio é um ser humano igualzinho a nós. Quer o que nós queremos, e não podemos usar o índio, que ainda está em situação inferior a nós, para demarcar essa enormidade de terras, que no meu entender poderão ser, sim, de acordo com a determinação da ONU, novos países no futuro. Justifica, por exemplo, ter a reserva ianomâmi, duas vezes o tamanho do estado do Rio de Janeiro, para talvez, 9 mil índios? Não se justifica isso aí”.

A fala do presidente é, por si só, contraditória. “O índio é um ser humano igualzinho a nós”, mas veja bem, nem tanto pois “ainda está em situação inferior a nós”. Ao propor que os povos livres e suas múltiplas etnias estejam abaixo dos estratos sociais e, por isso, devam ser salvos e elevados à “igualdade”, Bolsonaro toma para si o discurso higienista dos séculos anteriores e o amplifica com veemente disposição com o apoio da chamada “bancada do boi”, grupo de lobistas no congresso contra a demarcação de terras; olhos e ouvidos dos grandes latifundiários do país. Higienista, pois, propõe o extermínio das múltiplas culturas de seus múltiplos povos. Bolsonaro sugere em sua fala um processo de aculturação (quando uma cultura determinada é suprimida por outra, matando traços da original).

Os dizeres, sempre muito enérgicos, do Excelentíssimo vêm acompanhados das atitudes desumanas, como já é de praxe. No dia 08/07/2020, Bolsonaro vetou trechos de uma lei que previa medidas de proteção para os povos indígenas, como a garantia a água potável e ao acesso a produtos de higiene básica. A oferta emergencial a leitos hospitalares e de Unidade de Terapia Intensiva (UTI), também foram vetadas numa única canetada. Tudo isso, em meio a maior pandemia viral do século.

O rolo compressor anti-civilizatório do Presidente têm marcas profundas no passado e não há surpresa nenhuma nisso. Forjado na era dos extremos, Bolsonaro carrega o legado de Pero Vaz (um homem da Baixa Idade Média) com certa leveza, mesmo que não saiba.


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